quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Sobre Importância Pessoal

Enquanto durou, o Carnaval de 2018 me proporcionou um exercício incrível... Algo do tipo "Como perder a importância pessoal em X passos". Seguem algumas conclusões:

1. Vivêncie o ambiente hospitalar do lado oposto do balcão de informações.

As regras, protocolos e discursos e práticas de poder (e aqui uso o termo com base nas relações de poder de Foucault) aplicados dentro de um hospital incomodam e angustiam quem trabalha nesses ambientes. Do administrativo à assistência, em algum momento, todos se questionam sobre o sistema em que estão inseridos.
Porém, na condição de cuidador, as percepções se acentuam. E, de fato, essa condição cria uma inigualável oportunidade para a perda da importância pessoal. Mas, para isso, é preciso estar aberto para observar e sentir cada detalhe do caminho (como devemos fazer em relação a tudo na nossa vida). Isso exige se despir das nossas certezas e perceber a fragilidade humana - nua e crua. Quem não entende isso entra em embates e discussões sem fim na tentativa de receber tratamento especial, por acreditar que é especial. Com tal raciocínio a cegueira prevalece e impede o entendimento perceptivo da real situação: à certa altura da vida nossa autonomia é limitada e não temos controle de nada.

2. Tenha em mente que nem nome você tem: o trinta

A forma mais rápida para se perder a própria identidade é ingressar como paciente em uma instituição de saúde. Eles até tentam lhe chamar pelo nome mas aí surgem homônimos e a forma mais segura de lhe garantir o tratamento certo (procedimentos, medicações, dieta etc.) é fazer com que um número prevaleça ao seu nome. Foi assim que meu pai se transformou no 30.
- Já veio a dieta do 30?
- Deram banho no 30?
- Tem algo prescrito pra dor do 30?
Você passa uma vida inteira preservando o seu nome. Se esforça para mante-lo no cadastro positivo do Serasa. Alimenta apelidos respeitosos e carregados de carinho: Luizão para os admiradores. Luizico para os avós. Magrao para os amigos da sinuca. Tem gente que até cria nomes profissionais. Os chamados pseudônimos. Ja vi Manoel da Silva se tornar Mansil. Era mais audivel e bonito para um repórter de tevê. O fato é que todo mundo está sujeito a se tornar o 30. Todo mundo está sujeito a classificações limitantes que substituem nossos nomes por números, siglas, senhas. Não me refiro apenas a instituições de saúde mas a todo o sistema burocrático a que estamos submetidos no Brasil e em tantos outros países. Esses códigos também podem nos colocar em situações Vips mas no fim ainda seremos sequências alfanuméricas. Na queda de um avião primeira ou terceira classe você será identificado pelo código da poltrona.
Depois de uma vida inteira acumulando o desejo de a partir do nome e sobrenome ter boa reputação, ter dignidade, ter respeito e quiçá privilégios você será reduzido a isso. E com sorte e um pouco de boa vontade a fralda do 30 será trocada antes de causar assaduras. Mas, sabe, à certa altura da vida, uma assadura é o que menos importa.

3. Sim, nós já morremos

No momento que teve limitações de seus movimentos em virtude de um avc isquemico meu pai morreu um pouco. Morreu o homem independente e com autonomia. Morreu a figura altiva. Morreu aquele que dava a última palavra. Para a familia nascia o pai, o tio, o irmao, fragilizado, necessitado de ajuda. E quanto esforço para fazê-lo acreditar que era ele quem ainda dava as cartas. Quanto esforço para respeitar a autonomia que de fato já não havia. Para o hospital, nascia então um homem sem história. Sem profissão, sem senões. Ali você é o avecezado, o "ca estágio 4"... Aquele que precisa de suporte respiratório, que precisa de ajuda para virar-se na cama. Não importa se está no Einsten ou numa Santa Casa qualquer. O atendimento pode até vir maquiado de humanização (conheço instituições de saúde que usa o substantivo limitante "paizinho e mãezinha" para todos que ali chegam), mas a verdade é que ninguém ali está interessado na sua história de vida...No tecido social que você construiu ao longo da trajetória percorrida.
O sujeito que você é já está morto. E cada situação cotidiana lhe comprova isso. Em cada cena, em cada papel de ator social, alguma parte de você já está morta. Só viveremos mesmo numa compreensão maior, à revelia de toda a ilusão criada aqui.

4. Saiba: o seu corpo será sequestrado

Seja lá quem você for, em algum momento seu corpo será sequestrado de você, da sua família, das pessoas que você ama. Se você estiver numa instituição de saúde, internado como paciente, o sequestro já começará ali. E, bem, a partir dali, ele será remexido e manipulado da maneira que for conveniente para o outro. E o "outro" parece não saber que no próximo Carnaval pode ser ele a estar ali.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A menina de verde, a pretinha e os cílios postiços

É estranho, mas devo admitir que sempre tive uma queda pelo lúdico, pela fantasia, pela ilusão... Gosto sempre mais da ideia da coisa do que da coisa em si. Explico: gosto mais da personagem do que da pessoa de carne e osso. Gosto mais da ideia do amor do que do amor personificado com todas as suas intempestivas exigências. Provavelmente é por isso que a menina de verde, a cachorra de apelido pretinha e aqueles lindos cílios postiços moram ainda no meu imaginário... Porque eles não são muito reais. Só um pouco.
Ela até existe. Mas a ideia de vê-la sempre de verde, caminhando por aquelas ruelas charmosas, atendendo aos clientes no balcão daquela pizzaria de ilha é bem mais fantasiosa do que real. Ela é uma caiçara inexperiente. Mas naquele momento-instante é a menina dos olhos dos garotões que passam pela praia. Ela é a garota que eles vão encontrar lá todas as vezes que decidirem acampar naquele paraíso. Ela é a menina que não sai da ilha. A menina que realizou o sonho de muitos turistas: ela mora lá. E, para incrementar a personagem, é tímida de ar misterioso. Basta se aventurar a conversar com ela, no entanto, para notar que não há mistério ali. É uma jovem de pouca estrada, que trabalha para ajudar os pais a sobreviverem num local que depende do turismo e, especialmente, da alta temporada. É tudo isso e só. 
A pretinha é outra. Linda, charmosa e querida porque está apenas na praia, passeando... Ah, se ela estivesse nas ruas da esquizofrenia urbana, dependente da sensibilidade alheia, na invisibilidade social... Talvez estivesse num canto coberta de hospedeiros ou quem sabe fizesse parte das estatísticas dos cães recolhidos por ONGs... Em qualquer dessas situações, adeus encanto. Mas ali não é assim. Naquela ilha, ela demonstra seu talento ao nadar. Vive rodeada de amigos e vai longe em busca dos gravetos jogados pelos bonitões com sede de diversão... Ali, ela é uma encantadora cadelinha - e ponto.
Bem, chegou a hora mais fatal. Aqueles cílios são capazes de hipnotizar sonhadoras à beira do abismo. Mas, atenção, são postiços. Poderiam estar em qualquer olhar. Talvez nem existam daquela forma. Foram vistos com tal beleza por frestas de janelas d'alma. Foram ampliados pelo desejo de que existissem... Você entende? 
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